Friday, December 18, 2009

Devolvam - Por Paulo Brabo


Infelizmente, o mundo continua dividido entre feiticeiros e químicos, cientistas e filósofos, gramáticos e poetas. Digo infelizmente porque não foi sempre assim.

Houve tempo em que os astrônomos se enamoravam pelo piscar das estrelas, os físicos acreditavam que uma linda bordadeira havia costurado o universo e os biólogos celebravam que o ser humano respirasse, mesmo tendo sido um boneco de barro.

Houve tempo em que os jumentos falavam, as estéreis geravam filhos (extra)ordinários, os anjos matavam milhares de soldados agressores, os cajados secos floresciam e o sol parava para esperar que os mais frágeis prevalecessem na guerra.

Houve tempo em que as fadas ajudavam as órfãs, o beijo do príncipe ressuscitava a princesa do sono, os espelhos se rebelavam para responderem com honestidade e as crianças, talhadas em madeira, viravam gente.

Houve tempo em que a metáfora reinava na literatura. A copa das árvores era um cálice verde de onde respinga orvalho da manhã, a saudade, uma mulher que arruma o quarto do filho que já morreu e a alma da lua se escondia na garganta do galo que soluça seu canto na madrugada.

Só quero que me devolvam o que roubaram de mim.

Houve tempo em que se falava de Deus como suspiro, olfato ou paladar.

Nele, encontrávamos o colo materno, perdido desde a adolescência. Deus era pastor solitário que, sentado numa pedra, espiava suas ovelhas a pastar numa montanha distante; era o amante que abandona um harém para cortejar sua amada; era o juiz que assume a briga dos mais frágeis; era o médico que traz um bálsamo para aliviar a dor da alma; era o amigo que se achega como irmão; era o rei que anuncia a chegada de uma nova ordem; era o pai que educa seus filhos para uma existência madura e autônoma.

Houve tempo em que se liam os textos sagrados com reverência. Diante do numinoso, o mortal tremia; diante do sagrado, o pecador temia; diante do infinito, o finito se perdia, diante do eterno, o humano encolhia.

Lentamente, teólogos e exegetas, cientistas e técnicos, gramáticos e lingüistas, minaram os sonhos e fantasia dos meninos, esvaziaram a verdade dos poetas, quiseram explicar o mistério, captar a verdade, sistematizar Deus, dissecar o poema e criticar a alegoria. E conseguiram!

Eles exilaram os magos que correm atrás das estrelas; sumiram com os profetas alucinados que falam de rodas de fogo no céu; queimaram as mulheres que sentem no corpo, o êxtase do divino.

Esses assassinos da beleza, no ímpeto de explicar o impossível e mapear os rumos do Espírito, deixaram o mundo mais pobre, a fé mais segura, a oração menos incerta e Deus ficou pequeno.

Agora, quem precisar de milagre, pode dispor de hábeis evangelistas que ajudam a abrir as janelas do céu; quem tiver dúvidas, pode comprar exaustivos manuais sobre Deus; quando a vida parecer ameaçadora, é possível domesticá-la, contratando profetas de aluguel.

Minha alma, porém, anseia pela poesia que me abandone reticente; pela prosa que me ferva o sangue; pela ficção que me comova as entranhas; pelo drama que me arrepie a pele; pelos personagens que saltem dos palcos para encarnar em mim.

Sinto que Deus ainda vive no sonho das crianças; ainda habita onde reside a musa do poeta; ainda se revela no desejo do profeta; ainda se move além do horizonte utópico do guerreiro.

Sinto que sua habitação fica no vazio, no nada, e que sua glória se esconde numa nuvem espessa e ofuscante.

Sinto que posso perceber sua verdade no desconhecido absoluto e no inaudível, escutar sua voz.

Sinto que Deus é vento imperceptível, verdade diáfana e mistério espantoso.

Portanto, morro para o anseio de fazer análise sintática ou crítica textual dos textos sagrados. Já não invejo os apologetas, só quero que me devolvam o que roubaram de mim: a alma dos poetas, o coração dos meninos e a leveza dos bailarinos.

Ricardo Gondim

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