Saturday, July 02, 2011

Ecumenismo contra a ditadura






A comunhão de forças que possibilitou guardar a memória dos torturados nasceu de uma práxis ecumênica.

Antonio Carlos Ribeiro
Rio de Janeiro, sexta-feira, 24 de junho de 2011

O cardeal Arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, e o pastor presbiteriano unido, James Wright, tinham conflitos e um projeto comum na luta contra a ditadura. Arns relutou em pedir recursos à Igreja Católica, com medo que os conservadores trancassem o projeto e o denunciassem. Wright atuava numa igreja pequena, mas tinha contato com o Conselho Mundial de Igrejas (CMI). A comunhão de forças que possibilitou guardar a memória dos torturados nasceu de uma práxis ecumênica.

O líder ecumênico Jether Pereira Ramalho, à época editor da revista Tempo e Presença, do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), hoje Koinonia, costuma dizer que a comunhão de forças entre católicos e evangélicos para salvar vidas durante a ditadura resultou no avanço do ecumenismo no Brasil.

A articulação feita pelo cardeal Arns, especialmente pela tortura ensandecida que se abateu sobre centenas de religiosos na década seguinte a 1968, resultou numa reunião promovida com religiosos do exterior, com o objetivo de reunir apoio internacional e ajudar a mostrar a insatisfação nas ruas.

Após o encontro, o encarregado de direitos humanos do CMI, Charles Harper, informou sobre a "crescente tensão entre a Igreja e as autoridades".Também relatou sobre o ato que reuniu 6 mil pessoas na Igreja da Penha, em São Paulo, para debater as denúncias e alternativas de reação à repressão estatal.
Essa "foi a primeira vez que uma articulação tão lúcida, sob a iniciativa da Igreja no Brasil, foi feita desde 1964 em relação aos direitos humanos", afirmou
A invasão da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, da qual Arns era o Grão-Chanceler, com apreensão de uma tonelada de "material e equipamento subversivo" e a prisão de 1,5 mil alunos mostrou a ostentação de força e truculência das forças repressoras. Ela foi vista como "uma retaliação contra a Igreja", apesar do controle da mídia.

A Igreja Católica, tida como aliada de primeira hora do golpe de estado, teve nove bispos, 84 sacerdotes, 13 seminaristas e seis freiras, além de 273 agentes de pastoral presos, dos quais 34 sofreram tortura com choque elétrico, paus de arara e ameaças psicológicas na década.

Entre os quase 400 presos, houve pessoas com lesões físicas e psicológicas permanentes. Como esse número se multiplicava às dezenas pela população e sem a mídia, ideologicamente atrelada ao regime, viu-se a necessidade de levar denúncias ao exterior.

Os cidadãos que eram religiosos ou ligados às igrejas foram presos por proferirem homilias e pregações que denunciavam crimes e organizavam manifestações operárias que irritavam os militares. Como reação às igrejas, havia registros de sete pessoas mortas – entre as 18 ameaçadas – presas como "subversivas" ou suspeitas de passarem informações a dissidentes. Os órgãos de repressão intimaram 75 líderes para depor, exigindo a denúncia de bispos e sacerdotes.

A atuação do arcebispo de São Paulo conquistou apoio internacional. Levantou recursos para a manutenção de frentes de atendimento aos perseguidos políticos, teve encontros com líderes no exterior, alertou sobre as violações aos direitos humanos no Brasil, criou redes de contatos, financiadores de projetos e apoiadores das denúncias de crimes contra a população, especialmente no período de maior decadência e truculência do regime.

Esses fatos geraram a produção de relatórios, testemunhos, cartas, informações de dissidentes e depoimento de dezenas de acusados, que integraram as três caixas de documentos repatriados e encaminhados à Procuradoria Geral da República, no dia 14 de junho.

O estudo desse material integra a defesa do país diante da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Comissão Internacional de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), que condenou o país após o Supremo Tribunal Federal (STF) ter arquivado ação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

A fúria sobre o cardeal Arns, considerado alguém de "coragem, firmeza e sentido de timing" e por isso diversas vezes ameaçado – eram atenuados por movimentos de liberalização do regime ao tempo que mostravam a hesitação dos militares, temerosos de terem de responder pela violência e pela corrupção. Nessas ocasiões a violência recrudescia.

Em 1979, após a invasão da PUC, Arns estreitou relações com o pastor Philip Potter, secretário geral do CMI, e pediu recursos financeiros – que não poderiam vir de forma legal, para não sofrerem confisco – para o projeto Brasil: Nunca Mais, utilizados na publicação do livro homônimo em 1985. A pesquisa revelou os nomes de 444 torturadores, de 242 centros de tortura no Brasil e os testemunhos de milhares de vítimas, mapeando a repressão no país.

Um grupo de advogados, coordenados por Arns e Wright, aproveitaram o acesso concedido por 24 horas aos processos dos tribunais e dossiês, para fundamentar a proposta da Lei de Anistia, e coletaram 1 milhão de páginas, enviadas ao CMI e pelas quais foram detalhados os 15 anos da repressão no país em centenas de dossiês.

Arns insistiu que "as igrejas precisam tomar a iniciativa de garantir que, pela publicação desse material, tais coisas não ocorressem de novo". Ele pediu ao CMI que aceitasse a tarefa de levantar a grande maioria dos fundos necessários, no valor de 329 mil dólares, e “de uma forma confidencial".

A resposta de Potter, que chegou quase um ano depois, dizia que tinha conseguido "levantar a maior parte dos recursos necessários à realização do projeto especial", que era uma doação às "famílias dos operários em greve no ABC" e que a pesquisa sobre a tortura seria divulgada nas igrejas "em todo o mundo".

Os processos eram copiados, enviados para São Paulo, transformados em microfilmes e mandados para Genebra. O portador que levava as informações à Suíça voltava ao Brasil com dinheiro para o projeto. Arns informou a Potter que o dinheiro "estava sendo gasto estritamente de acordo com os planos aprovados". Da tarefa executada por Arns e Wright surgiu uma forte amizade.

Quando Wright faleceu em 1999, o cardeal enviou uma mensagem através do Provincial dos Franciscanos em Vitória, com condolências à família e a lembrança da vida dedicada à guarda da memória. Os protestantes elogiaram dom Paulo Evaristo Arns por ter dado apoio moral e espaço físico a quem lutou contra a ditadura, inclusive dentro da Igreja, e foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz, mas o governo brasileiro atuou nos bastidores contra a proposta.

Ao viajar a Roma com dom Aloísio Lorscheider, outro cardeal franciscano, para defender Leonardo Boff, Arns irritou o cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Boff ficou calado por quase um ano e ele viu a Arquidiocese de São Paulo ser dividida em quatro, meses depois.

Mas nunca traiu a memória dos mártires. Por isso, foi aplaudido duas vezes no ato da repatriação dos documentos.

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