Posicionamento luterano baseado nas duas doutrinas-chave: a Doutrina dos Dois Reinos e a Ética dos Dois Regimentos com relacao ao momento politico.
1. A Doutrina dos Dois Reinos
Esta doutrina fundamental afirma que Deus governa o mundo de duas maneiras distintas:
O Reino da Mão Direita (Reino Espiritual): Onde Deus age através do Evangelho, da graça e da fé, para salvar a humanidade. É o domínio da Igreja, onde o amor e o perdão são a lei suprema.
O Reino da Mão Esquerda (Reino Secular/Temporal): Onde Deus age através do governo, das leis e da razão para manter a ordem, conter o caos e a injustiça, e garantir o bem-estar relativo da sociedade. É o domínio do Estado.
A partir disso, surge um princípio claro: a separação entre Igreja e Estado. A Igreja não deve governar o Estado, e o Estado não deve governar a Igreja. Um político, portanto, deve ser julgado primariamente por suas ações no âmbito secular (justiça, ordem, bem comum), e não por sua religiosidade pessoal.
Aplicação à situação de Bolsonaro:
Um teólogo luterano analisaria suas políticas e ações de governo não por quantas vezes ele citou a Bíblia, mas por como elas se alinham com a função do "Reino da Mão Esquerda":
Suas políticas promoveram a ordem e a justiça para todos, ou beneficiaram alguns grupos em detrimento de outros?
Como seu governo lidou com os pobres, os vulneráveis e as minorias (função de "mantenedor da ordem" e "promotor do bem comum")?
Houve respeito pela autonomia das diferentes esferas, como a ciência (especialmente durante a pandemia) e o judiciário?
2. A Ética dos Dois Regimentos (ou Usos da Lei)
Martinho Lutero elaborou a ideia de que a Lei de Deus tem três usos, sendo dois deles ("usos políticos") diretamente aplicáveis ao governo secular:
Uso Civil da Lei (Usus Politicus): A lei serve para conter o pecado e a desordem na sociedade através da ameaça de punição. É a função de "freio" da maldade.
Uso Espelho da Lei (Usus Elenchticus): A lei mostra ao indivíduo o seu pecado e sua necessidade de um Salvador, Cristo.
Aplicação à situação de Bolsonaro:
A análise focaria em como o exercício do poder se relaciona com a lei:
Seu governo fortaleceu as instituições e a aplicação imparcial da lei (o "freio" contra a corrupção e a injustiça)?
Ou houve um enfraquecimento dessas instituições e um discurso que frequentemente desafiou as normas estabelecidas (ex.: ataques ao STF, TSE, etc.)?
Para um luterano, a autoridade secular é ordenada por Deus (Romanos 13), mas essa autoridade também está sujeita à lei e é responsável por cumpri-la. Um governante que age como se estivesse acima da lei falha em seu propósito divino.
3. A Questão do Culto e da Idolatria
Um ponto crítico da teologia luterana é a luta contra a idolatria — que é colocar qualquer coisa (riqueza, poder, nação, um líder) no lugar que pertence somente a Deus.
Aplicação à situação de Bolsonaro:
A análise seria muito crítica em relação a dois aspectos:
A instrumentalização da religião: O uso explícito de símbolos e linguagem cristãs para ganho político é visto com grande ceticismo. Para a teologia luterana, a fé não é um instrumento de poder secular, mas de graça e humildade.
O risco de idolatria política: A devoção quase religiosa a uma figura política, onde o líder é visto como um "salvador" da pátria, é contrária ao princípio central do Solus Christus (Somente Cristo salva). Qualquer discurso que coloque a nação, uma ideologia ou um homem no centro é um desvio da fé.
Posicionamento Síntese:
Um posicionamento luterano claro em relação à situação de Jair Bolsonaro não seria a favor ou contra ele como indivíduo, mas uma avaliação crítica de suas ações e retórica com base nos princípios acima:
Cética em relação ao uso da fé para fins políticos, vendo-o como uma potencial corrupção tanto da fé quanto da política.
Ênfase no Estado de Direito, questionando qualquer ação ou retórica que enfraqueça as instituições democráticas e a aplicação imparcial da lei.
Foco no bem-comum e na justiça, especialmente para os mais vulneráveis, como uma das principais funções divinas do governo secular.
Preocupação com a idolatria, alertando a comunidade de fé para não substituir a devoção a Cristo pela devoção a um líder político, mesmo que ele se declare cristão.
Respeito ao processo legal: Qualquer situação judicial envolvendo Bolsonaro (como a inelegibilidade decidida pelo TSE) seria enquadrada no âmbito do "Reino Secular". A teologia luterana defenderia o respeito às decisões das instituições legais constituídas, pois estas são as ferramentas ordenadas por Deus para manter a ordem temporal.
Em resumo, a teologia luterana precisa fornecer lentes críticas baseadas na lei, na função do governo e nos perigos da idolatria, e não um endosso ou condenação simplista baseada em afiliação religiosa ou preferência política partidária. A conclusão final seria um chamado ao discernimento, à responsabilidade cívica e, acima de tudo, à fidelidade a Cristo como critério último de julgamento.
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